sábado, 31 de julho de 2010

Flutuando no Vazio

Um dia acordei e olhei tudo ao meu redor, e as coisas me pareceram estranhas. Talvez eu também fosse uma estranha para mim mesma naquele momento. Mas eu sempre estive lá, eu acordava na mesma cama, olhava para o mesmo relógio e abria a mesma cortina. Por que então essa estranheza, esse desconhecimento do conhecido há tanto tempo? Verdade seja dita, eu não sabia, e isso me incomodou tanto que não conseguia pensar em outra coisa. Mas com toda a minha obsessão por saber e entender aquela agonia, eu descobri que eu sempre vou querer saber algo. Sei que não devo me estender às minhas outras caminhadas pelo desconhecido, então vamos continuar.

Antes de acordar eu sonhava, espero que não se assustem com o meu inconsciente, mas eu sonhava com pessoas sem rosto e elas faziam várias coisas em tempo inusitado. Depois tentei fugir da multidão sem face que me seguia e caí, mas eu não caí de um abismo, fui me achar enterrada em uma piscina de bolinhas coloridas. Lembro de me achar estúpida no momento, quando levantei não estava em nenhum parquinho, eu estava em alto mar e meu bote era aquela frágil piscininha. Vi-me desesperada quando notei a imensidão do mar e minha insignificância. Sim, estava me sentindo insignificante. Às vezes me sinto assim, tento não me deixar levar por esse sentimento, mas quando me vejo já estou cheia de besteiras na cabeça. Besteiras? Não sei, não. Talvez você também seja apenas uma “coisinha” no mundo gigantesco e selvagem. Isso sempre me deixa angustiada. Fato que acordei com esse sentimento de inferioridade, mas isso não explica o porquê eu estranhei a minha casa.

Eu não me lembrava da minha cama. Como poderia esquecer o meu colchão quase mole e quase duro ao mesmo tempo? Tantas noites bem dormidas e outras de pura insônia, mas mesmo assim confortáveis. Sempre desarrumada, mas minha cama é minha cama e de mais ninguém. Quando acordava sempre olhava para o relógio e pensava: “só mais cinco minutos”.

Meu relógio tão velhinho, feio até, mas desde que o achei no lixo ele é só meu, e só acordo ao som rouco da sua campainha. Rouco sim, ele estava um pouco molhado e quebrado, o som não poderia ser tão bom assim. Porém, ele se tornou um relógio diferente, único.

Depois de passar os cinco minutos inteiros olhando para o relógio, esperando os tais cinco minutos de sono passar, eu escutava o som do aparelhinho, espreguiçava-me e, em seguida, meus pés adoravam sentir o chão frio e sem pressa eles o sentiam e iam se aproximando da janela. Essa é a parte que adoro, pois falarei da minha cortina. Lilás e foi feita por mim. Não sou muito boa nas funções de uma moça tradicional, pois não sou uma, mas sei fazer fuxicos. Os fuxicos parecem suspiros de pano, e fiz vários deles, todos lilás, juntei-os, o resultado foi uma cortina linda. Tudo bem, eu achar o que eu fiz maravilhoso, mas sou um pouco suspeita para falar. Porém, acredite, eu sou bastante crítica comigo mesma, se não estivesse realmente bom eu nem a mencionaria aqui. Mas o que explicaria o fato de ter acordado e achar esquisitas as coisas as quais sou tão afeiçoada?

Sentei numa cama estranha, olhei para um relógio feio e de som estranho, e vi uma cortina linda, mas eu não a associava a mim. Porém, ainda achava aquela teia com suspiros de algodão e fibra a coisa mais linda que eu havia visto na vida. Não sei se deveria usar essa expressão, pois eu também não me lembrava de vida alguma. Quando me dei conta disso me desesperei. Eu não tinha lembranças, eu tentava pensar em algo, mas nada acontecia, simplesmente minha memória era a parte vazia do meu cérebro.

Eu sou bastante teimosa, com certeza não iria aceitar tão facilmente que não tinha lembranças. Que eu era apenas um pedaço insignificante de carne jogada num lugar com uma cortina maravilhosa. A única solução que encontrei foi criar lembranças, usar minha imaginação e me tornar uma pessoa com uma história de vida. Resolvi usar os objetos a minha volta como ponto de partida. Você já deve imaginar qual foi o primeiro, sim, a cortina.

Eu a amava tanto que pensei: “Ficaria satisfeitíssima se eu mesma a tivesse feito”. Imaginei-me andando por uma rua repleta de lojas de tecido. Não, não, uma loja de tecidos é tão impessoal. Voltei ao início, imaginei-me abrindo um guarda-roupa. Dele eu tirava um longo vestido lilás, mas estava rasgado. Eu parecia sentir muito por perder aquela peça de roupa. Olhei para o espelho. Sem querer me desfazer do belo longo lilás, eu tive uma idéia. Usar minha única especialidade como costureira, fuxicos, para fazer uma cortina. Tentei sentir o mesmo prazer e orgulho que imaginei que teria sentido. Depois me veio à mente o momento em que colocava a cortina sobre a janela. Senti-me um pouco melhor, mas não só uma cortina poderia ocupar toda minha memória.

A cama começava a me parecer confortável e resolvi deixá-la para depois do relógio. Aquele objeto com certeza deveria ter saído do lixo. Era vermelho, porém estava um tanto enferrujado nas bordas que eram prateadas, estava um pouco amassado do lado esquerdo e parecia bastante velho. Agora uma rua era o ambiente perfeito. Era um dia nublado e frio, eu andava pelas calçadas. Distraída eu acabei batendo a cabeça em um poste, e andando mais um pouco esbarrei num monte de sacos de lixo. Você deve pensar que sou uma desastrada, não? Tenho uma coisa a dizer-lhe: Com certeza você esta certo. Eu realmente sou um desastre. Mas dessa vez meu desastre me levou a um objeto que me chamou a atenção. Dentro de uma caixa, perto dos sacos, jazia... Isso mesmo,... Jazia um relógio de cabeceira. Não pensei duas vezes, trouxe-o comigo com tamanho cuidado que parecia carregar uma raridade, e talvez ele seja exatamente isso. Quando cheguei a minha casa, o criado-mudo parecia ter deixado um espaço especial para o novo morador. Um morador que teve que ser enrolado numa toalha assim que chegou, mas que sobreviveu e cantou com sua voz rouca a partir daquele dia todos os dias às seis da manhã. Eu odeio acordar cedo, mas meu querido relógio me fazia acordar com carinho e ainda me esperava por mais cinco minutinhos.

Agora eu poderia imaginar as minhas memórias sobre a cama. Como quase tudo na casa, menos a cortina, a cama também me parecia ter sido de segunda mão. Então me veio a imagem de um telefone azul daqueles que fica parecendo um vai-e-vem quando se vai discar o número. Eu estava deitada em um tapete de retalhos quando ele tocou. Uma voz me dava uma notícia: minha tia-avó tinha me deixado uma herança. Mandariam-me tudo que pertencia a mim por direito em duas horas. Quantas malas de dinheiro? Quantas jóias? Eu compraria tudo novo, depois descobri que não era exatamente isso que faria com dinheiro em mãos, eu gosto de coisas usadas e que ninguém mais tem. Duas horas depois do telefonema: um caminhão, um homem barbudo e sujo, uma cama com um colchão estranho e desapontamento. Uma cama velha? Que bela herança. Eu não queria que essa fosse minha lembrança, mas eu já não controlava o que estava acontecendo. E minha herança foi uma cama, grande e confortável apesar de velha. Não se faz camas hoje em dia como as de antigamente, na época em que minha tia-avó casou. Gostei tanto da cama que a idéia do dinheiro saiu da minha cabeça.

Mas, espera um pouco. Se eu não queria que essa história acabasse assim e apesar disso a cama ficou no lugar do dinheiro, então já não era mais fruto da minha imaginação. Senti um filete de esperança. Olhei-me no espelho, comecei a reconhecer meu rosto, o meu nariz espaçoso, minha boca carnuda, minha gengiva avantajada, meu queixo dobradinho. Estava tudo lá e as coisas foram aparecendo com tanta velocidade na minha frente que desmaiei.

Um dia acordei e olhei tudo ao meu redor, como sempre fazia todos os dias.

2 comentários:

  1. Caramba Pequena, gostei pra caramba visse. Gostei da forma de escrever, uma desorganização que vai se organizando... Muito muito bom! Bj

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  2. Eu já tinha lido há muito tempo! Um conto interessante! A linguagem um tanto desconexa e a subjetividade das coisas triviais tratadas no decorrer da história são interessantes. Pena é que cinco minutos num instante passa, mas é possível uma grande viagem imaginária como que sobre um efeito de ópio... rsrs... Mas suponho que o texto rebuscado foi escrito mesmo sem o uso de qualquer entorpecente ou narcótico... hehe... Que venha os próximos textos...

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